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domingo, 14 de agosto de 2011

APENAS UM PONTO NO CÉU



Por Sérgio Luiz Maranhão Ritzmann (meu irmão)

Meu pai faleceu ha dois anos. No meio do turbilhão de emoções, sentimentos e lembranças que me acometeram, uma história se tornou recorrente. Até durante as noites mal dormidas ela se repetia na minha mente.
Vou contá-la a vocês.

Retorno ao ano de 1978, no Colégio Santa Maria, ainda na rua XV de Novembro. Se fechasse agora os olhos seria capaz de lembrar de detalhes até imperceptíveis naquela época, como a corda do sino de arame, sempre meio torta, o antigo assoalho de madeira, muito gasto e meio mal encaixado, rangente e extremamente limpo, o corredor inclinado do primeiro pavimento e o cimento alisado do andar térreo.
Lembro do frio que fazia e o vento perfurante que corria por todo aquele prédio, a areia grossa do pátio, as filas da cantina, as velhas mesas de ping e pong, de tudo, lembro de tudo.
Das emoções também, dos cheiros, dos medos pelo atraso, por não saber as respostas quando inquirido pelo professor, por ter que se levantar para responder e, as vezes, não ter o que dizer, de me escolherem para jogar e sentir a desaprovação dos colegas.
Ao término das aulas o barulho do sino era o passaporte da liberdade. Ah a liberdade, para mim este sonho se materializava quando meu pai me autorizava dirigir seu carro, e isto aconteceu a partir dos 9 anos de idade.
Outros tempos, cessão de liberdade antecipada, e em contra-partida, nascia também prematuro o sentimento de responsabilidade.
Ao final das aulas, lá estavam aguardando, os pais e mães, engarrafando o trânsito daquelas ruas vazias dos anos 70. Enfileiravam-se os galaxies, darts, opalas, fuscas, brasílias, belinas, variants e tantos que hoje reconheço pelo detalhe e que minhas filhas, deparadas a qualquer deles, não têm nem idéia, de onde emergiram tais relíquias.
Pois bem, naqueles dias fomos incumbidos de apresentar uma peça de teatro, a nossa escolha, no tempo de, aproximadamente, 15 minutos.
A equipe era sempre a mesma dos amigos que sentavam por perto, variando um ou outro, de acordo com a determinação do número de participantes.
Reunidos no recreio: Celso Assahida, Carlos Chevalier, Caio Cassou Jr, Maurício Andersen, Antônio Carlos, Jorge Ivan e eu.
Decidimos que, no dia seguinte, avaliaríamos as sugestões de textos para escolhermos qual deles iríamos representar.
Acho que já se revelava em mim um talento de escolher as pessoas certas para cada atividade. Explico o Jorge Ivan que relacionei é na verdade o reconhecido ator e produtor teatral Jorge Sada, hoje à frente da escola Cena Hum, de dramaturgia.
Comentei, em casa, durante o almoço que, no dia seguinte, teríamos que escolher o texto para representar. Eu estava mais disposto a ouvir do que propor qualquer coisa na reunião da equipe. (Até porque meus planos consistiam em comparecer à reunião munido de todo meu poder de persuasão e nada mais).
Naquela noite, surpreendentemente, meu pai chegou em casa com umas folhas manuscritas em papel almaço, um texto grande, todo em forma de diálogo.
Perguntei a ele o que era, se para eu ler naquele momento tudo aquilo, ou se poderia ser mais tarde.
Ele respondeu que era a peça que eu precisava para o dia seguinte e que ele havia escrito para nós.
A letra dele era completamente uniforme. Acho que ele fez aula de caligrafia naqueles caderninhos de linha amarela. As pernas dos pés, quês e efes eram perfeitas, parece que todas inclinavam no mesmo ângulo.
No dia seguinte, começou aquele papo furado de shakespeare, Brecht, Molière, blá blá bla e ninguém tinha nada. Foi quando saquei aquelas folhas de almaço manuscritas, feitas especialmente para nós. Me senti o aluno mais inteligente da face da terra, ao menos, geneticamente.
O Jorge levou o texto pra casa, com a finalidade de estudá-lo distribuir os papeis, organizar o cenário, montagem, coreografia, e tudo que a busca pela melhor nota fosse capaz de lembrar.
A história era muito simples, e assim, bem fácil de representar.
Tratava de um grupo de meninos, que durante a tarde, sem ter absolutamente nada para fazer, resolvem confeccionar um balão para depois vê-lo flutuar no universo.
A dinâmica da história que representamos com maestria, todos disfarçados para dar um ar de profissionalismo, consistia nas providências para a feitura do balão, distribuição de tarefas, de acordo com as habilidades de cada um.
No meio umas piadas, a situação de que poucos fazem muito e tantos não fazem nada, o otimista sonhador, o pessimista incrédulo. O pés no chão, o voador, o prático, o iludido...
Durante toda movimentação de confecção, conseguimos manter um interesse e uma sinergia com a platéia, coisa impressionante, parece que toda aquela gurizada estava ali, embora no campo das idéias, esperando a hora de acender o balão e vê-lo subir e subir, forte e confiante, numa altura e distancia, que só acompanharíamos pela imaginação.
Finalizado o balão, alguém pôs fogo na tocha e ele inicia sua subida, lento e absoluto, em direção ao inatingível, ao sem controle, à distância, ao desconhecido...
Será que outro grupo de meninos teria a sorte de encontrá-lo. Mas parece meio injusto eles serem premiados de tê-lo pronto, de mão beijada, sem nenhum trabalho. E nós que fizemos tanto para pô-lo a voar....
Com a subida imaginária do balão, uma sensação de fim e frustração tomou conta de nós atores e de todos que nos assistiam.
Foi bem estranho, acabou e não sobrou nada, todo esforço, todo material conseguido, todo empenho, todas as risadas que havíamos dado durante a caminhada, parecia, tinha ido tudo embora com o balão. Afinal não ficamos com ele, não sobrou nada.
Restou somente a imagem dele de afastando, afastando, dominando os céus e o universo para se tornar apenas um ponto no céu.
A última fala, diante do silêncio de todos, quando se perde o balão de vista foi: E agora o que vamos fazer ? Ah sei lá. Vai cada um para sua casa? Não, não - vamos fazer outro?
Não sei ao certo quais daqueles meninos sentiram o que eu senti ou o que compreenderam depois daquele dia.
A peça foi uma lição de vida para nós.
Qual é senão o objetivo de nossas vidas senão descobrirmos um fim e trilharmos um caminho para atingi-lo?
É no curso deste caminho que vamos nos aproximar do outro, compartilhar, e aprender a seguir uma meta.
É no caminho que vamos descobrir nossos talentos, os do outro e o valor da vida.
É no caminho que nos tornamos fortes e necessitamos impor nossa vontade.
É no caminho que nos apoiamos no próximo, naquilo que não temos.
É no caminho que aprendemos a dividir e sorver do que nos falta.
É no caminho que aprendemos a andar junto.
É no caminho que aprendemos que pouco importa com quem vai ficar o balão.
É no caminho que descobrimos o sucesso de vê-lo flutuar.
É durante o caminho que aprendemos a sonhar e esperar.
É no caminho que aprendemos a viver.
O balão de desvencilhou rápido de nossas mãos como se tivesse alma própria e tomou seu rumo celeste, absoluto, em direção ao seu destino inexorável.
Ficamos com as mãos vazias.
Órfãos da nossa própria obra.
Sinto-me assim hoje meu pai, só.
Obrigado por você ter aquele dia escrito aquele texto, e tantos, tantos e tantos outros que estão gravados na minha mente.
Eles foram escritos no meu caminho e hoje fazem parte de mim.
Só assim você está comigo...
... e eu estou com você.

Sérgio Luiz Maranhão Ritzmann

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